
MARIA EDUARDA MALUCELLI
ARTISTA
FLAMINGOS
Perdem sua a cor rosa enquanto criam seus filhotes e podem ficar brancos temporariamente, devido à intensidade do processo. Contudo, aos poucos, sua cor volta. Por isso, quando sentir que perdeu-se de si na maternidade, lembre-se: um dia, a sua cor ainda voltará.
Vídeo por Bruna Barros, Novas Auroras Fotografia
2022
INSPIRA ~ AÇÃO

"Reencontro comigo ao desalinhar memórias". Fotografia Digital 1. 2022
Marianna Marquetti
“Quem sabe um dia
Recolho no espaço
Pedaços de mim que o tempo
Recolheu e guardou
Do tempo que pra mim
Não fui
Porque fui você”
Marianna Marquetti
As palavras contidas na obra de Marianna Marquetti (disponível aqui) me inspiraram. Conseguir externar tudo o que sinto até então estava difícil, eu não tinha nas mãos o tempo que julgava necessário para tal reflexão. Voltar para a faculdade depois de parir foi como uma brisa fresca inesperada em um dia de verão, assim como falar e focar em outros assuntos para além da maternidade durante as aulas. Quando me dei de encontro com o poema da mãe da artista utilizado na obra, contudo, não consegui conter a emoção. São poucas palavras, mas que dizem tanto do que sinto. Ainda que não fosse motivado pela maternidade, mas por outras relações conforme a autora expressa, para mim, elas dão voz à perda de identidade, a doação intensa e insana que é gerar uma vida, e escolher cuidar e proteger esta vida pelos seus primeiros anos. Sinto que me despi completamente de mim e vesti uma nova armadura, uma outra personalidade ainda em construção, uma busca por me (re) conhecer.
Quando confrontada com essa realidade, não consegui conter minhas lágrimas e, junto delas, a minha dor pela perda de mim. Eu imagino que as borboletas sintam dor ao sair do casulo, assim como as cobras ao trocar de pele; as aranhas e todos aqueles animais que sofrem uma grande transformação física para evoluir. É como eu me sinto: eu ainda sinto, eu sinto muito, eu sinto tudo. Eu senti a dor mais linda da minha vida no parto, e eu sigo doendo e sangrando por dentro a cada renúncia por mim mesma, minha identidade, liberdade, independência. Tudo mudou, de uma forma linda e brusca, sem aviso ou preparo, em um processo de muito sofrimento e dores físicas, por todas as mudanças pelas quais seu corpo passa, mas emocionais também. Contudo, durante minhas pesquisas encontrei uma informação que elaborou todo esse sentir: os flamingos perdem a sua cor rosa enquanto criam seus filhotes e podem ficar temporariamente brancos, devido à intensidade do processo. Mais tarde, aos poucos, a sua cor volta. Saber disso, me trouxe esperança. De saber que tudo o que vivo e sinto é um processo natural, e, ainda que ser mãe e se sentir à parte do mundo e até de si própria possa ser solitário, eventualmente isso também irá passar. Um dia, a minha “cor” ainda voltará.
Motivada por isso, entendi que meu desafio era trazer esta informação para mais mães. Enquanto cuidamos de filhos, não existe tempo para vida social, celular ou qualquer tipo de escape. O cuidado básico que envolve comer, dormir e o mínimo de higiene pessoal muitas vezes fica comprometido quando você é a única pessoa disponível para seu bebê, principalmente quando você não conta com rede de apoio voluntária ou paga, com escola ou possibilidades de dividir o cuidado. Talvez, da mesma forma que eu, outras mulheres se sintam sozinhas, à margem de suas próprias histórias, perdidas. Entendi que, de alguma forma, meu desejo era trazer conforto para elas, já que, de modo geral, pensa-se muito pouco no bem estar das mães. Eu mesma, sem ajuda, sinto todos os dias a cidade me reduzindo ao ambiente doméstico, me cercando como se fosse aquele o único espaço ao qual eu pertenço. A maior parte dos lugares não é inclusivo quando temos crianças junto, e os poucos existentes ainda são precários. Desde parques sem infraestrutura mínima, praças com mobiliários em materiais que superaquecem e impedem seu uso, até restaurantes e outros lugares que parecem excluir, não acolher. Por si só, voltar a estudar foi um grande desafio: a universidade também não dá apoio às mães, e ainda que eu pudesse levar meu filho comigo, não disporia lá de um espaço mínimo apropriado para cuidar dele da forma que precisaria.
Veja, eu não falo aqui de uma minoria, falo de algo que todas as pessoas têm em comum: alguém que as pariu. Não deveriam existir hoje mais formas de suporte a esse período, dado o quanto é importante e necessário que crianças tenham tempo de qualidade com suas mães? Mais ainda, o quanto as mães que passaram por todo um processo dolorido em todos os sentidos, desde a gestação ao nascimento do bebê, precisam de auxílio a sua saúde mental? Quantas mais voltam ao trabalho poucos meses depois e sem estarem totalmente recuperadas depois de passar por um trabalho de parto que pode ter durado dias, ou ainda de uma cirurgia que corta 7 camadas do seu corpo?
Pessoalmente, estar grávida e me manter produtiva foi um grande desafio, mas a sociedade não está pronta para essa conversa. Minha vida mudou completamente naquele momento: de empreendedora independente e provedora do nosso lar, fiquei completamente improdutiva e vulnerável. Me vi dependente emocional e financeiramente do meu marido, algo totalmente novo para mim. Em determinado ponto, nem mesmo calçar os sapatos era possível sozinha, e foi somente no pós parto que vivi uma depressão e meu maior desafio até então. Depois de uma gravidez desejada e sem riscos, mesmo em um relacionamento estável, o incontrolável se apresentava mais uma vez em minha vida depois de decidir ser mãe. Não pude voltar a trabalhar e não retomei minha vida. Precisei de muita resiliência e luta interna pra passar por esse período que considero o mais difícil de minha história: os dias doces conhecendo meu recém nascido, amargados pela necessidade compulsória de muitas vezes estar socialmente presente, abrir sua casa e seu ninho para familiares; amar seu bebê e se ver completamente indisponível pra si mesma, na tentativa de se recuperar de uma anemia após um parto lindamente conquistado.
Enquanto mulher, me deparei com muitas realidades das quais não tinha ideia quando desejei parir. A cultura brasileira de nascimento hoje quer nos fazer acreditar que uma cesárea é algo desejado, mesmo sendo uma cirurgia inicialmente planejada para emergências. Nossa capacidade de parir nos é roubada quando a maioria dos médicos tenta nos convencer de que um ambiente controlado, que paga melhor para ele e leva menos tempo é a melhor opção para você e seu bebê. Contudo, há comprovação científica o suficiente que prova o contrário. Isso não é sobre julgar as mães que optam pelo procedimento cirúrgico de retirada do bebê, mas sim sobre ludibriar as mulheres e convencê-las do contrário por mera comodidade médica. Uma vez que as taxas das maternidades em Curitiba beiram 95% de cesárea, entendi que minhas chances de chegar na maternidade (já que o parto domiciliar é julgado por desinformados como irresponsabilidade), e ter meu tão esperado parto natural eram irrisórias. Depois de muito estudo e pesquisa, entendi que era comum que as mulheres fossem convencidas ou até compelidas a não escolherem parir, com as mais diversas justificativas infundadas para as pesquisas e estudos científicos atuais. Foi nesse cenário que, mesmo em meio a uma crise financeira, decidi investir todos os meus recursos no parto que seria mais saudável para mim e para meu bebê. Mas, a quantas outras mulheres isso é acessível ou viável? O que nos torna tão diferentes, mesmo passando por algo tão comum e nos sentindo de forma tão igual?
Era apenas o início dos meus questionamentos enquanto mãe, e que remontam a algo que faz sentido para todos nós: novamente, cada ser humano na Terra veio de um útero. Independentemente da história, e pensando na realidade das mulheres que, como eu, estão formando uma família, vejo aumentarem os desafios conforme adentramos na maternidade, indo desde amamentação, alimentação, sono, a tantos outros; ao fato de que, pelo menos nos primeiros dois anos, um bebê precisa de muito contato com a mãe; ao fato de que, cada vez mais, pais recorrem ao uso de telas, tão prejudiciais para o desenvolvimento cerebral das crianças, ou ainda ao fato de que cada vez mais estamos mais distantes de um estilo de vida que espera, respeita ciclos e processos. O que fazer quando falta o básico, quando não se tem suporte no início, quando o ambiente e a cidade não são inclusivos, quando a sociedade não está preparada para criar as crianças que precisa que salvem seu futuro?
Eu escrevo através de uma lente de privilégio e acesso, e não vou nem mesmo aprofundar a questão das mães que fazem tudo o que faço sozinhas ou em condições atípicas, já que para mim são sobre-humanas. Para elas e todas as mães, para as mulheres que, como eu, ainda que se sintam sozinhas, perdidas no espaço, quebradas, dilaceradas, com a alma em mil pedacinhos, deixo estas palavras que não são minhas, mas que estão carregadas de dor, reconhecimento e esperança:
“Quem sabe um dia
Recolho no espaço
Pedaços de mim que o tempo
Recolheu e guardou
Do tempo que pra mim
Não fui
Porque fui você”
Maria Eduarda Malucelli